A guerra do fogo

O Globo, Amanhã, p. 26-28 - 21/08/2012
A guerra do fogo
Incêndios criminosos ameaçam áreas protegidas e terras indígenas. E abrem caminho para o desmatamento

Cleide Carvalho
cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br

De um mirante a 600 metros da sede do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, é possível avistar a cachoeira Véu de Noiva, uma das paisagens mais bonitas do Cerrado. Para a equipe de administradores do parque, o ponto é privilegiado não apenas pela beleza da queda d'água de 86 metros de altura, mas porque dali é possível avistar sinais de fumaça. Afinal, onde há fumaça, há fogo. Em 2010, durante mais de duas semanas, as chamas consumiram a vegetação nativa, destruindo 40% dos 33 mil hectares do parque. O incêndio, o maior já registrado no parque até hoje, foi criminoso. Alguém, propositalmente, ateou fogo em vários pontos ao longo da estrada. Naquele ano, havia sido iniciado um sistema de cadastro de guias turísticos autorizados a trabalhar na área, desagradando os que atuavam ilegalmente. Havia também o desconforto com a fiscalização da vizinhança, para evitar que o parque fosse usado como pasto.
No último dia 9, o expediente estava sendo encerrado quando foi vista fumaça no Coxipó do Ouro, comunidade colada ao parque. A primeira equipe da brigada antifogo partiu no início da noite para identificar a área. Outras se juntaram a ela na madrugada. Só na manhã seguinte os 20 homens deram o trabalho por encerrado e puderam retornar à base.
Assim como o de 2010, este foi um incêndio criminoso. Desde 15 de julho, por causa do período de seca, é proibido realizar queimadas no Mato Grosso, mas alguém colocou fogo no mato ao pé da Chapada, deixando sob ameaça a área de preservação.
Segundo dados do Instituto Chico Mendes, que administra os parques nacionais, 22 mil quilômetros quadrados de unidades de conservação federais foram atingidos por queimadas nos anos de 2010 e 2011, o que correspondeu a uma área similar à do estado de Sergipe. Este ano, só na primeira metade de agosto, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um único satélite, o Aqua, registrou 654 focos nessas áreas. Entre as unidades de conservação estaduais, o Aqua observou 513 queimadas, a maior delas no principal parque estadual do Maranhão, o do Mirador, que está ardendo desde o início de julho. Nas terras indígenas o número mais que dobra e os focos são em maior quantidade justamente no Maranhão, em Bacurizinho e Cana Brava.
- Nestas áreas não era para ter fogo. Cada foco tem alguém por trás, que começa colocando fogo até descaracterizar totalmente a floresta natural. Os dados do desmatamento mostram áreas quando já não há mais nada em pé, mas existe no Brasil uma enorme área de floresta degradada que não é computada.
É um ponto nevrálgico que precisa ser discutido -afirma Alberto Setzer, coordenador da área de monitoramento de queimadas e incêndios do Inpe.
Visto pelos satélites, o Brasil arde em chamas ano após ano. Os números de 2012 já surpreendem. Afinal, o período de seca mais intensa ocorre no segundo semestre e apenas até 13 de agosto os focos de incêndio somavam mais de 43 mil, superando em 70% os registrados em 2011 e se aproximando de 2010, o pior dos últimos cinco anos. O Sistema Nacional de Informações Sobre Fogo (Sisfogo), do Ibama, computava até esta data 14.917 km2 de áreas queimadas, 13% a mais do que no fatídico 2010.
- Incêndio natural é apenas o causado por raio, que geralmente precede chuvas e, por isso, não toma grandes proporções. Entre 98% e 99% das queimadas são criminosas, por dolo ou culpa. A matriz econômica incentiva e a impunidade facilita que ocorram os grandes incêndios - diz Christian Berlinck, coordenador de Emergências Ambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
No Brasil, há fogo todos os anos dentro e fora de unidades de conservação. Em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, a queimada começou no início de agosto e, duas semanas depois, as chamas ainda ardiam. Não eram dois ou três focos. Eram mais de mil por dia. Para conter o fogo num único ponto próximo à cidade foram despejados 165 mil litros d'água em 300 lançamentos feitos por helicóptero.
As queimadas fecham aeroportos, causam problemas de saúde em comunidades próximas, que aspiram fumaça e fuligem, e trazem prejuízos incontáveis à biodiversidade. Sem contar o custo e o esforço dos mais de 3.500 brigadistas contratados pelo Ibama e pelo ICMBio, que se embrenham no mato em lugares onde a temperatura, em situação normal, passa de 35 graus Celsius. Bombeiros e equipes municipais se juntam a eles.
- O fogo em Corumbá começou em área devoluta, usada irregularmente como pastagem, e virou incêndio florestal. Como a área não tem dono, não tem como responsabilizar ninguém - diz Márcio Yule, coordenador do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), no Mato Grosso do Sul.
Este mês, numa das incursões contra a queimada, Yule se deparou com um jacaré morto. O bicho foi atropelado na BR-262.
- Ele estava fugindo do fogo. Em condições normais, jacarés não chegam ao asfalto.
Alguns animais, como o tamanduá, têm o olfato prejudicado pela fumaça e perdem o sentido de orientação. No lugar de se afastar das labaredas, vão em direção a elas e morrem queimados - lamenta.
Há muito o que lamentar no Brasil quando o assunto é queimada. Desmatamento, queimadas e agricultura respondem por 80% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa.
Florestas nativas quase nunca voltam a ser como antes e até a vegetação do Cerrado, que brota rapidamente após a queima, corre hoje sérios riscos.
- Ela está sucumbindo à velocidade da ação humana - resume Gabriel Zacharias, chefe do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais.
Cultura do fogo
Berlinck diz que o país precisa vencer a cultura do fogo. Risca-se fósforo para queimar lixo e mato em terrenos pequenos ou hectares de terra. Em tese, as queimadas precisam ser autorizadas, mas a burocracia dificulta a legalidade em comunidades distantes, já que é preciso vistoria de órgãos estaduais.
- Muitos incêndios são causados por piromaníacos, por litígio com o ICMBio ou equipe gestora da unidade de conservação, ou, simplesmente, para ver o circo pegar fogo.
Comunidades pequenas geralmente têm pouca coisa para fazer e, quando ocorrem grandes incêndios, a estrutura empregada movimenta o local - diz Berlinck.
Há casos em que o incendiário é identificado e levado à polícia. Só que pouco adianta.
Na Chapada Diamantina, na Bahia, um homem foi surpreendido por brigadistas. A cada 200 metros, descia do cavalo e colocava fogo. Ele usava uma área de proteção como pastagem e estava sendo obrigado a deixar o local.
- Ele foi detido e levado à delegacia. Foi solto antes que nossos homens saíssem. A burocracia para registrar a ocorrência era maior do que a gravidade do crime aos olhos do delegado. Tivemos que fazer um acordo com a polícia para ele ser solto apenas com autorização da Justiça - conta Berlinck.

Queimadas na mata

43.891 focos de queimadas foram detectados pelo Inpe este ano no Brasil

55,4% das queimadas destruíram o Cerrado

5 Estados respondem por 67% das queimadas

22 mil quilômetros quadrados é a área devastada nos parques nacionais no período de 2010 e 2012

O Globo, 21/08/2012, Amanhã, p. 26-28
Florestas:Queimadas

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Chapada dos Guimarães
  • UC Mirador
  • UC Chapada Diamantina
  • TI Bacurizinho
  • TI Cana Brava
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.