Na Amazônia, comunidades gastam até 40% da renda com energia gerada por combustíveis fósseis
Diesel é a única opção em áreas isoladas. Em períodos de seca extrema, custo é ainda maior
30/06/2025
Sérgio Adeodato
Na comunidade de São Francisco do Caribi, em Itapiranga (AM), a vida da produtora Elizangela Cavalcante gira em torno do combustível fóssil - em um lugar de natureza exuberante na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Uatumã, de onde retira o sustento. Além de pagar R$ 375 semanais no transporte de barco para venda de tucumã e outros frutos nativos na cidade, são gastos R$ 600 mensais com diesel para operar a movelaria familiar que processa madeira do manejo florestal.
Longe da rede elétrica, ela ainda paga a cota de R$ 80 por mês para o óleo do gerador de energia comunitário, e outros R$ 40 para a bomba puxar água do poço e abastecer a residência. No fim das contas, 40% da renda são consumidos pela dependência do petróleo, agravada na região devido à mudança climática.
Na seca extrema amazônica, quando é difícil a navegação nos rios, como ocorreu no ano passado, conseguir o combustível fica ainda mais caro. Junto aos custos, há emissão de carbono e poluição sonora pelo barulho dos geradores.
'Motores de luz'
Sob construção da Hidrelétrica de Balbina, inaugurada nos anos 1980, a região do Rio Uatumã onde vive Elizangela sofreu impactos ambientais severos, sem que a usina tivesse contribuído para o abastecimento de energia de comunidades distantes das cidades.
- Fonte fóssil eleva custos, principalmente no beneficiamento, e encarece produtos da bioeconomia - diz André Vianna, diretor técnico do Idesam, organização parceira de projetos na região.
Vinícius Silva, líder de projetos do Instituto Energia e Meio Ambiente (Iema), diz que, na Amazônia Legal, existem 175 centrais de energia isoladas, como pequenas e médias usinas termelétricas não conectadas ao Sistema Interligado Nacional, que abastecem 2,5 milhões de pessoas.
Pelos dados do Iema, há 1 milhão de habitantes sem acesso a serviço público de energia, dependentes de geradores a diesel ou gasolina - os "motores de luz" só são ligados à noite, por quatro horas.
No programa Energia da Amazônia, vinculado à privatização da Eletrobras, o governo federal tem a meta de investir R$ 5 bilhões para universalizar o acesso à eletricidade na região, substituindo o diesel por fontes renováveis (solar, eólica, biomassa, hidrelétricas) em sistemas isolados.
- Se quisermos baratear o custo de energia, é necessário encontrar meios para que a receita do setor elétrico nacional consiga resolver a dependência fóssil dos sistemas isolados - diz Silva.
Reverter o cenário tem implicações políticas, porque estados e municípios são remunerados pela geração de termelétricas. Substituí-las significaria arrecadação menor.
Locomoção pelos rios, luz, comunicação por internet, atividades produtivas, conservação de alimentos e água gelada dependem do combustível fóssil na Amazônia.
- O futuro da região, essencial ao clima do planeta, passa por soluções energéticas que tragam melhor qualidade de vida na floresta- aponta Ademar Cruz, coordenador de articulação institucional da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), com ações junto à população de 28 reservas ambientais.
Segundo Cruz, o preço da gasolina em áreas remotas chega a ser o dobro do cobrado nos municípios com rede elétrica. O mercado é dominado por poucos com poder político e econômico, e ter boas relações com donos de postos de combustível é chave para não ficar no escuro.
-É cada vez mais comum o uso de botijão de gás de cozinha no lugar da gasolina para locomoção nas rabetas (pequenos barcos regionais), com fácil adaptação dos motores.
Em alguns grotões, o desafio do combustível se junta às ameaças das atividades ilegais e aumento da violência.
- Devido ao custo alto e ao medo instalado nos rios, ribeirinhos reduzem viagens até as cidades para receber o Bolsa Família- observa Cruz.
Ele lembra que as limitações interferem na bioeconomia: além das dificuldades no transporte, a produção não é maior por falta de meios seguros de refrigeração onde não há energia o tempo todo. Sistemas solares chegam como alternativa, diz Cruz, mas "é preciso uma política de preços e linhas de crédito específicas e acessíveis à realidade dos ribeirinhos".
- É uma questão de segurança, autonomia e qualidade de vida - enfatiza Tayane Belem, diretora de marketing e parcerias do Litro de Luz, organização presente em 15 países para tornar a iluminação solar acessível à população de baixa renda.
A tecnologia social de postes e lampiões solares, lançada nas Filipinas a partir de uma invenção brasileira, chegou ao país há 11 anos e até o momento beneficiou 140 comunidades, muitas na Amazônia.
Com uso de materiais simples como cano PVC, garrafas PET e lâmpadas de LED, a solução é de fácil manutenção pela própria comunidade. Em junho, foram instalados cerca de 100 postes solares em comunidades quilombolas da Ilha do Marajó (PA), com engajamento dos moradores.
Nesse arquipélago, na Ilha das Cinzas, a energia solar abastece agroindústria recém-instalada para o beneficiamento da amêndoa de murumuru, da semente de ucuuba e do fruto de patauá, visando o fornecimento de óleos e manteigas a indústrias de cosméticos, com renda 60% maior em relação à venda do produto in natura.
- É uma oportunidade de inspirar modelos adaptáveis à nossa realidade e mostrar que é possível fazer a transição energética -ressalta Francisco Malheiros, presidente da associação local, a ATAIC, com 470 famílias fornecedoras, na foz do Rio Amazonas.
A expectativa da ATAIC é faturar neste ano R$ 2,2 milhões com produção de 40 toneladas de bioinsumos.
Em Oriximiná (PA), produtores indígenas, quilombolas e ribeirinhos reféns do petróleo negociam com compradores a ajuda no combustível para viabilizar a coleta de cumaru, a baunilha amazônica de alta demanda, vendida a R$ 200 o quilo.
- O peso da carga e o trajeto nos rios - contra ou a favor da correnteza - influenciam no consumo de diesel - conta Naildo Jesus, auxiliar de logística da Cooperativa Mista dos Povos e Comunidades Tradicionais da Calha Norte (Coopaflora). O grupo é apoiado pelo Imaflora no Programa Florestas de Valor, que fortalece técnicas de produção sustentáveis na Amazônia.
Foi necessário racionalizar o transporte dos produtos da floresta até a cidade. Com internet, reuniões virtuais substituíram longas e caras viagens para assistência aos extrativistas. São custos nem sempre embutidos nos preços de venda, mas hoje há o alívio de sistemas solares que fornecem energia elétrica a diversas comunidades do município.
No território quilombola Alto Trombetas II, a rotina está livre do combustível fóssil dos geradores, só utilizados para garantir luz e o som alto nos grandes festejos. Já não é necessário pagar R$ 60 por família ao mês para ter energia nas casas das 18h às 22h. Com eletricidade o dia todo sem dependência do diesel, conta Jesus, moradores se sentiram estimulados a comprar televisão, freezer e iluminação nova para casa.
Mesmo com royalties, indicadores sociais são baixos
Enquanto se discute a exploração de petróleo em área marítima na Foz do Amazonas, municípios amazônicos que recebem royalties pela energia fóssil produzida em terra registram baixos indicadores sociais e ambientais. No estado do Amazonas, porém, há uma dupla realidade.
De um lado, Coari (AM), maior produtor de óleo e gás natural, onde se localiza na Província Petrolífera de Urucu, ocupa o último lugar no índice do Atlas ODS Amazônia, conforme pontuação baseada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Já Silves (AM) se destaca pelo Campo de Azulão e figura na segunda melhor posição no ranking estadual, atrás da capital, Manaus - embora com números de qualidade de vida abaixo da média nacional.
Os municípios combinam expansão do PIB e desmatamento. De Coari parte o gasoduto de 661 km até capital, com cerca de 5,2 milhões de m³ de gás natural por dia destinados a gerar energia elétrica e abastecer o Polo Industrial. No licenciamento da obra, inaugurada em 2009, foram estipulados recursos de R$ 21 milhões para compensação de impactos, sem que houvesse ganhos sociais estruturantes de longo prazo, segundo pesquisadores.
Em 2025, na estimativa da Agência Nacional do Petróleo (ANP), o município deverá receber R$ 73,5 milhões em royalties, mas apresenta as piores avaliações quanto ao uso de água segura e alta taxa de feminicídio e de moradias precárias, além da incidência de conflitos de terra e queimadas, de acordo com o Atlas.
A plataforma monitora 42 indicadores socioambientais, 11 dos quais Coari obteve nota zero, o que revela baixo nível de desenvolvimento sustentável.
Em nota, a Petrobras, que teve os contratos prorrogados nas concessões da Bacia do Solimões, afirma que desenvolve ações voltadas à promoção da sustentabilidade e do desenvolvimento social em Coari em projetos que somam R$ 37 milhões em três anos.
Em Silves, a produção de gás natural transportado por carretas para abastecimento de usina termelétrica em Roraima renderá R$ 1,9 milhão em royalties este ano. Os indicadores municipais mostram bom desempenho no tema da saúde, mas não na redução de desigualdades.
É intenso o fluxo de mão de obra e serviços urbanos com a construção do Complexo Termelétrico Azulão 950, em andamento, no total de R$ 5,8 bilhões de investimento.
No município, com 9,2 mil habitantes, a expectativa de um novo eldorado esbarra no questionamento do Ministério Público Federal (MPF) quanto aos riscos de impactos ambientais e aos direitos de populações tradicionais, o que resultou em ações na Justiça.
- Não houve estudo do componente indígena, necessário inclusive em áreas ainda não demarcadas como reserva, onde há instalações do empreendimento - afirma Fernando Merioto Soave, procurador da República no Amazonas.
A empresa de energia Eneva, produtora de gás natural em Silves, responde que "todos os seus projetos são conduzidos com rigor técnico e absoluto respeito à legislação ambiental, aos direitos das comunidades locais e aos trâmites legais estabelecidos pelos órgãos competentes".
A companhia calcula que a remuneração média aumentou de 1,7 para 2,5 salários mínimos entre os moradores da cidade. A reportagem do Valor procurou as prefeituras de Coari e Silves para comentar os indicadores socioambientais, mas não teve retorno.
https://oglobo.globo.com/brasil/cop-30-amazonia/noticia/2025/06/30/na-amazonia-comunidades-gastam-ate-40percent-da-renda-com-energia-gerada-por-combustiveis-fosseis.ghtml
Amazônia:Petróleo e Gás
Unidades de Conservação relacionadas
- UC Uatumã
As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.