Plataforma traça o mapa da renda na floresta amazônica contra desmatamento
Banco de dados de cadeias produtivas de região crítica busca atrair investimentos para negócios sustentáveis
01/06/2025
Ana Lúcia Azevedo
De borracha premium para tênis de corrida e pneus de automobilismo a bioplástico para embalagens de celular, a Amazônia diversifica os produtos da bioeconomia. São cadeias que vão além do açaí e beneficiam algumas das áreas mais pressionadas pelo desmatamento no Brasil. É o caso das florestas do Amazonas no chamado Interflúvio Madeira-Purus. A região entre os dois rios está no epicentro da discussão sobre o reasfaltamento da BR-319 (Manaus-Porto Velho), pivô dos ataques à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, no Senado, na semana passada.
O primeiro mapeamento das cadeias produtivas da região será lançado amanhã. A plataforma digital Redes da Sociobiodiversidade no Interflúvio Madeira-Purus -vastidão de cerca de 200 mil km2 (dependendo dos limites considerados) e 11 municípios do Amazonas - faz um raio-X de associações, cooperativas e pequenos negócios que mantêm a floresta em pé. Desenvolvida pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), a base de dados de acesso aberto tem como meta fortalecer redes, atrair investimentos e impulsionar a sustentabilidade. Por trás, uma prova da ideia de que floresta pode gerar renda.
- Essa região sofre com desmatamento, grilagem de terras e a expansão de infraestrutura que pressiona a floresta, especialmente a BR-319. Mapear e fortalecer as cadeias socioprodutivas é fundamental para gerar renda, assegurar a permanência das populações tradicionais e conservar a biodiversidade - afirma a líder da Iniciativa Estratégica de Governança Territorial do Idesam, Fernanda Meirelles.
Na zona quente da terra desmatada está Lábrea, que deve sediar um dos polos do Plano Nacional de Bioeconomia, a ser lançado na COP30. Ponto focal de cadeias da floresta, como de borracha, pirarucu, castanha-do-Brasil, açaí, murumuru, farinhas, tucumã, copaíba e andiroba, Lábrea é o terceiro município que mais desmatou de 2019 a 2024 no país e o primeiro na Amazônia.
Na contramão
Os dois maiores desmatadores - São Desidério (BA) e Balsas (MA) - estão no Cerrado, segundo o Relatório Anual do Desmatamento do Brasil, do MapBiomas. Em seis anos, Lábrea derrubou, em média, 350 mil metros quadrados de floresta por dia - ou um Parque Ibirapuera a cada três dias.
Lábrea segue na contramão da tendência de queda do desmatamento da Amazônia, com alta de 19,1% em 2024 em relação ao ano anterior. A floresta dá lugar, sobretudo, à agropecuária. Mas Meirelles diz que só a mera menção a pavimentar a BR-319 atrai grileiros e induz ao desmatamento.
Ali termina a Transamazônica, a BR-230, construída pela ditadura para ocupar a Amazônia. Ela permanece coalhada de trechos intransitáveis ao longo de seus 4.260 km e tem fim numa favela de palafitas, sem saneamento básico, como quase toda a Amazônia.
Lábrea está à margem do Purus, um dos rios mais sinuosos do mundo, de 3.700 km. Suas águas barrentas carregadas de sedimentos alimentam uma prodigiosa biodiversidade aquática e terrestre. Entre as árvores está a seringueira, raiz da cidade originalmente povoada por migrantes nordestinos trazidos para os seringais no Ciclo da Borracha, no fim do século XIX. A própria fundação da cidade em 1881 é atribuída ao coronel da borracha maranhense Antônio Rodrigues Pereira Labre, que trouxe os primeiros seringueiros.
A borracha entrou em decadência, mas muitos, sem opção, permaneceram ali, a maioria na pobreza. Hoje, seus descendentes veem reemergir o interesse pela borracha natural da Amazônia, mais resistente, flexível e produtiva que a de seringueiras plantadas. É vendida para empresas como a Michelin, de pneus, e a Veja, que produz tênis esportivo.
- É o clima daqui e a riqueza da várzea do Purus que fazem a diferença. As pessoas nem sabiam que a gente ainda existia. E estamos nos reerguendo. Mantemos essas florestas, para nós são tudo. Dá muito orgulho saber que nossa borracha vai parar em pneus de automobilismo, em tênis de marca - diz David Lima, presidente da Associação dos Produtores Agroextrativistas da Comunidade José Gonçalves (APACJG), que tem 450 associados em 80 comunidades.
Dois litros de látex da seringueira nativa rendem um quilo de borracha. Nas árvores plantadas a relação é de quatro litros por quilo. A produção chega a 60 toneladas, e o preço por quilo, que leva em conta práticas sustentáveis, subiu de R$ 3 para R$ 20 desde 2019.
Mas, sem muito esforço não se extrai látex ou qualquer outra riqueza da mata. Sob a copa de castanheiras, samaúmas, bacuris-de-anta e outras gigantes, o céu é sempre verde, chova ou faça sol. A umidade das plantas encharca o ar, e a sensação de abafamento faz o calor mais intenso dentro que fora da mata. Insetos, não só mosquitos chupadores de sangue, zunem, picam, incomodam 24 horas, sem trégua.
A noite é melhor para coletar látex, devido à fisiologia das seringueiras, mas a umidade é tanta que o abafamento é maior que durante dia.
- Não tem jeito porque é quando a seringueira dá mais leite - diz José Lino, de 29 anos, da comunidade Santa Rosa, a cerca de duas horas de voadeira do Centro de Lábrea.
Nem só de borracha vivem os 48 moradores de Santa Rosa, onde se trabalha com castanha, murumuru, andiroba, mandiocas nativas e a mutamba, árvore conhecida por usos medicinais, como o combate à queda de cabelo. A comunidade fica na Reserva Extrativista (Resex) Médio Purus e suas trilhas na floresta se perdem de vista e só terminam quando começam as terras indígenas que margeiam o Rio Ituxi.
- A vida aqui é dura, mas é boa. É preciso ter disposição, coragem. Não, nem penso em sair - frisa o líder comunitário Osiel da Silva, de 53 anos.
Coleta-se não só a amêndoa da castanheira, mas também o ouriço. Na biofábrica da Associação de Produtores Agroextrativistas da Colônia do Sardinha (Aspacs), o ouriço, que era descartado, vira matéria-prima para bioplástico. Na mesma entidade há beneficiamento de farinha de mandioca de variedades amazônicas com o mesmo propósito. É desse tipo que serão feitas embalagens para celulares na Zona Franca de Manaus. Já as folhas da mutamba, vendidas já secas, serão transformadas numa nova linha de produtos para o cabelo da Natura, conta Silva.
Comunidades indígenas
Rogério Apurinã, de 27 anos, que integra a Organização da Juventude Indígena de Lábrea e da Aspacs, destaca a importância de trabalhar com toda a cadeia de produtos florestais. Em Lábrea há 15 terras indígenas demarcadas, de povos como Apurinã, Paumari, Himerimã, Kaxarari, além de terras habitadas por povos isolados, como a Jacareúba-Katawixi.
- A casca de tucumã, por exemplo, tem mais energia que a madeira para alimentar caldeiras - exemplifica.
A presidente da Aspacs, Sandra Barros, de 59 anos, diz que a ideia é explorar novas cadeias, como a do cumaru, e conseguir recursos para vender os produtos com mais beneficiamento e maior valor agregado:
Trabalhamos até com o ouriço, que ninguém queria. Encontramos uma forma de usar a casca duríssima do murumuru em calçamento. Mas, para ter escala, é preciso investimento, parceria com centros de pesquisa, e essa plataforma pode nos ajudar a fazer conexões e a crescer.
https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/06/01/plataforma-traca-o-mapa-da-renda-na-floresta-amazonica-contra-desmatamento.ghtml
Biodiversidade:Biosociodiversidade
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